Parte I
O dever é abstrato; a tarefa é
concreta. A origem do dever é o arquétipo cósmico para o homem. Origem da
palavra: do grego, deontós “o que é
preciso”. Isto é, aquilo que é necessário que o homem realize para que sua tarefa
se cumpra dentro do organismo planetário. Sendo assim, o que proporcionaria desenvolvimento pleno à consciência humana? O que estabeleceria
plena justiça entre os homens?
“Não matarás”, por exemplo, em última
instância, não é ordem-obrigação, haja vista o livre-arbítrio. Há o poder-fazer-algo. A possibilidade é sempre
dada ao homem. Tudo lhe é, em verdade, possível; embora nem tudo lhe seja
“devível”. Isso porque a tarefa a que um homem possa se propor é humana, mas o
dever a que se propõe cumprir, não; é sobre-humano, é imaterial, é
consciencial. O papel do Direito seria o de concretizar, de materializar
regulamentando, normatizando, especificando os detalhes e intuindo o dever
imaterial subjacente a cada situação, essa lei imanente à consciência humana.
Daí, sua qualidade atemporal.
O que se diz de evolução ética é
somente uma aparência, porquanto numa fase humana primitiva não que o código de
ética fosse outro menor, isto é, o dever fosse frouxo ou incipiente. Ele é o
mesmo. A Lei é única. O que mudam é o ser humano e a largura de sua
consciência, a partir da qual ele vê mais ou menos ampla e claramente o dever
que lhe cabe em determinado círculo ou situação.
Nesse sentido, embora parecesse
“devível” ao homem primitivo matar animais e/ou se alimentar deles, isso não
implica que:
1)
o dever para aquele
era um e para os homens atuais seja outro;
2)
o ser humano atual
tenha o dever de matar animais e/ou de se alimentar deles, dado que está dentro
de uma conjuntura totalmente diversa.
O dever absoluto sempre foi “não
matar”. A capacidade humana de compreensão é que é relativa. Há um dever
(desdobramento e especificação do Dever Único) para cada situação.
Percebê-lo claramente em todas as
ocasiões é a meta. Entretanto, ainda não se alcançou esse estado de consciência,
e o que se faz é algo pessoal, i.e., a ação é resultado do livre-arbítrio
(superfície da mente), não da percepção clara da ação justa, em consonância com
o dever.
É, inclusive, desse estado de
inconsciência que nasce um perigoso jogo de interesse em que o indivíduo é
aplaudido, elogiado e recompensado por simplesmente cumprir com o dever. A
causa disso está no descumprimento do dever por parte de quase todos. Como é
raro se cumprir com o dever, os que o fizerem podem passar a ser recompensados.
Isso, embora pareça inócuo, tem efeito
desastroso sobre o organismo social:
·
O indivíduo se
cristaliza em torno da falsa ideia de que o dever é para ser cumprido somente
se houver recompensa;
·
Nesse sentido, o que
deve ser feito pode meramente não ser
percebido ou mesmo abandonado. A partir do momento em que o livre-arbítrio
entra em jogo, praticamente o dever é
obscurecido pelo querer.
A História evidencia: de um lado, o
interesse e o desejo do Homem possuem força capaz de elevar ou de desvirtuar os
mais altos propósitos; de outro, sua capacidade é limitada, mesmo a de fazer o
bem.
Daí, constata-se que o legislador – o
homem de Direito, assim como outro de qualquer profissão – tem a
responsabilidade de buscar ir além do livre-arbítrio, ou seja, buscar transpor
um mecanismo não-neutro, parcial, passível de tendências e quereres que
obnubilam o alcance de uma ação suficientemente justa.
Se alguém compreende que na ordem
cósmica não há falhas; órbitas e translações perfeita e harmoniosamente
regulares; ciclos cronológicos tão espantosamente gigantescos quanto precisos;
a colaboração de tudo quanto é visível e invisível no sentido de manter o fluxo
de VIDA; então, se alguém almeja ordem, perfeição, harmonia, precisão e Vida neste
planeta, portanto isso não será implantado enquanto as mesmas leis superiores
que regem a ordem cósmica extra-planetária não se refletirem nas leis planetárias.
Tanto no plano terrestre quanto cósmico,
a precisa decisão tem o nome de Justiça. Sob sua regência, o positivo que se
encaixa de maneira justa e precisa dentro do negativo; o espaço que é justa e
precisamente preenchido. Então, a etimologia de dever tem e faz duplo sentido.
O justo cumprimento do Dever pede justa
decisão. Visto que o Dever/Lei/Ordem perfeita é supra-humana (cósmica) e que a
decisão/Legislação/Ordenação imperfeita é humana (ou alguém, em sã consciência,
diria o contrário?), então a justa decisão/ Legislação humana, considerada
enquanto tal, deve ser espelho do Dever/Lei supra-humana (isto é, da lei que
supera a qualidade mental humana).
Se alguém compreende que o
livre-arbítrio provém da mente humana; e a intuição, de sua supramente, logo se tem que a decisão
justa não pode prover do livre-arbítrio mental, mas da intuição supramental.
Daí, que a decisão justa e acertada não
está, necessariamente, em conformidade com o Direito humano, mas com a Lei supra-humana.
Logo, ainda que alguém possa não saber explicitar os pormenores da ilegalidade
da prática de aborto doloso, se alguém compreende que o “não matarás” é uma Lei
Cósmica, Lei de Manutenção do Fluxo de
Vida, tem-se, portanto, que o que fere a Lei Cósmica, haja vista sua
perfeição, não pode ser considerado legal, ainda que o Direito humano tenha a
possibilidade de legislar o contrário.
Parte II
A imparcialidade/neutralidade
é pressuposto do desenvolvimento e da justiça,
visto que o envolvimento e a injustiça
são parciais/polares.
Isso porque é aparente e relativo o
desenvolvimento das coisas com as quais nos encontramos apaixonadamente
envolvidos. Como foi demonstrado, se ao Dever não cabe beneficiar este ou
aquele, se é pura expressão do que deve-ser-no-agora,
então o dever-justiça é neutro. Daí
que se chega à constatação de que não se pode haver pleno desenvolvimento
através apenas do livre-arbítrio mental, mas pelo cumprimento do dever
supramental, visto que aquele leva ao envolvimento devido à polaridade ao passo
que este, ao desenvolvimento devido à neutralidade.
Se bem que possa haver decisão-livre-arbítrio-mental que se
aproxime da justiça, tem-se que a precisão e a justeza daquela serão limitadas,
por mais apurada que tal decisão possa ser. Há grande distância entre o
arbítrio consciente e o arbítrio supraconsciente, ou seja, entre o pensamento e
a intuição. Aquele é parcial na
medida em que:
1) A decisão mental, enquanto fruto de
um dos corpos da personalidade egóica (a qual é composta pelos corpos físico,
emocional e mental), tende naturalmente a priorizar o benefício do eu. Ora, o
que beneficia prioritariamente o eu não
necessariamente beneficia o grupo que o inclui. Logo, a decisão mental não
garante plena justiça.
2) Mesmo na hipótese de que a decisão
mental não vise conscientemente ao benefício individual, mas ao grupal, outros
grupos podem não ser comtemplados.
3) Ainda que todos os grupos do Reino
Humano fossem contemplados, pela decisão tomada, algum outro Reino planetário
poderia estar sendo prejudicado, o que, a bem da verdade, é o que vem
ocorrendo.
Além de parcial, como demonstrado
acima, o pensamento humano (por meio do livre-arbítrio) é polar, na medida em que:
1) O positivo se opõe absolutamente ao
negativo. A oposição gera total mas não relativa exclusão.
2) Nesse sistema lógico, não há o
absoluto que vê a parcela de positivo presente no negativo e vice-versa.
3) No caso de vinculada, a estrutura
mental, tão somente ao princípio lógico de não-contradição, não alcança a
percepção de que para além da aparência polar do que está existe a essência neutra do que é.
4) O que é – o que deve-ser-no-agora
– não é alcançado, pois se não é perceptível que há algo de X em Y e algo de Y
em X, a essência daquilo que está
majoritariamente constituindo X ou Y não pode ser percebida, uma vez que o
conjunto vazio, a neutralidade única, é subjacente a todo e qualquer conjunto.
Se se concebe que pura e absolutamente
X é somente X; e Y, somente Y; não se chega ao equilíbrio sintético que
pressupõe a neutralidade. Isso porque o relativo não inclui o absoluto, mas o
absoluto inclui o relativo. Em outras palavras, a mente, visto que
relativa-polar, faz uso de mecanismo absoluto para ascender ao absoluto; ao
passo que a intuição, visto que absoluta[1],
faz uso de mecanismo relativo para descender ao relativo.
Daí que o que deve-ser-no-agora faz-se necessário partir não da absoluta
dissolução mental, mas da relativizada absolvição intuitiva[2].
O deliberador será tanto mais capaz de estabelecer firme e precisamente o que deve-ser-no-agora quanto maior for a
precisão de ver intuitivamente o quanto de positivo há no negativo e
vice-versa, isto é, a partir de um plano imaterial de síntese, deliberará com
precisão sobre o material em análise. Ele, deliberador, partirá do neutro
conjunto vazio inerente a todo conjunto e, da essência para a aparência,
chegará a uma decisão ampla, visto que a origem desta está na essência de tudo,
portanto, conhecedora de tudo, não incorrerá em imparcialidade ou polaridade,
mas será a própria manifestação da justiça,
haja vista que aquele que conhece as partes
não pode dizer perfeitamente sobre o todo,
mas aquele que conhece o todo pode
dizer perfeitamente sobre as partes.
Parte III
Como exposto anteriormente, nos
exemplos de parcialidade, a perfeita e justa decisão se torna
humana-mental-matematicamente inviável. O que deve-ser-no-agora só pode ser suficientemente cumprido a partir de
decisão que provenha de um nível superior ao mental, ou seja, de um nível que
não esbarre na limitação matemática inerente à capacidade combinatória mental.
Finalmente, haja vista que a
deliberação intuitiva não contemplará cegamente apenas X ou apenas Y, mas o
quanto e o que de X há em Y; assim como o quanto e o que de Y há em X;
conclui-se que somente um mecanismo supramental, a saber, a intuição, tem condição de estabelecer plenamente, devido à sua
natureza imparcial e neutra, o que deve-ser-no-agora,
permitindo que o verdadeiro desenvolvimento, o da consciência fraterna, e a
verdadeira Justiça sejam o próprio caminho humano.
[1] Absoluto: do latim, -ab (longe,
distante) e –soluto (dissolvido em); portanto, aquilo que não é dissolvido,
decomposto em duas ou mais partes, mas único e indivisível.
[2] A
mente, como demonstrado, tende naturalmente a separar absolutamente o positivo
do negativo. Entretanto, a intuição consegue ver o quanto de positivo há no
negativo e vice-versa. A partir de um plano de certeza, ela vê a relação entre
os dois pontos de dúvida. Ao saber o quanto,
ela também sabe o que de positivo há
no negativo, de modo que sua decisão é específica e inédita, porquanto nada se
repete; e pode até parecer insensata ao ser mental, visto que ultrapassa o
raciocínio lógico.